A manhã é fria, estranha, amarelada, o gato mia alto no telhado, está lá desde ontem a noite, calado, mas no frio úmido e solitário da manhã seus miados me acordam, me veem a lembrança de que ele está lá desde ontem, de que a noite foi estrelada, de que a noite foi fria e quente, de que o vinho entorpeceu a razão, de que a fumaça nos trouxe uma alegria fugaz, para amenizar a certeza da distância que se aproxima. A noite foi leve, saudosa, as lágrimas chegaram a espiar no canto do olho mas foram contidas, nas lembranças das risadas puras e brilhantes.A noite teve duas luas.

A voz já torpe dava boa noite.
A manhã começou com o agito de um gato amedrontado, acordando-me e me trazendo inquietude, de ser, de ir, de vir, de amar, de odiar, da saudade vindoura, tão má conselheira, da doença, da morte.
A manhã fria corta minha pele, o ar úmido e gelado da manhã me dá bom dia, e me lembra que por alguns dias não o sentirei, penso na geografia, no relevo, nos mundos, nos povos, nas pessoas, penso no tempo, penso no mar.
Sirvo uma caneca generosa de café e me sento para fumar, pigarrear e lembrar do causo, do marinheiro que não conhecia o mar. 
Certa feita a vida nos trouxe um marinheiro, com o conhecimento do mar, a inconstante como o mar, porém grande e sereno como o mar, cheio de nomes, cheio de identidades, cheio de si, profundo, com encostas, com pedras, com belos entardeceres e amanheceres no seu reflexo. Mas a vida agraciou esse marinheiro de essência, com o desconhecimento da distância, da imensidão do mar, do tempo gasto para ir e vir, do embalar das ondas, a vida poupou por hora, a despedida, a solidão as vezes tumultuada da viagem. 
Mas como a piada que ela é, a vida leva o marinheiro para o mar, ele, acostumado com rios, que fluem para a mesma direção, que fluem para o mar, ele que é um rio caudaloso, que corria em direção ao mar com mansidão, e temeridade, heis que se vê na foz, No porto. Prestes a embarcar.
O peito com medo da saudade, tão vã conselheira por momentos chega a se entregar, e decidir do porto voltar, deixar o norte, e no sul se fixar, mas ele é marinheiro, ele é mar, ele é rio que corre pro mar, e como um rio ele não pode parar, ou mudar sua direção, como um rio ele só pode ir.
Fumo, calmamente fumo, sorvo cada partícula de fumaça, um fumo com gosto de saudade, um fumo com gosto de afeto, com gosto das coisas simples, dos atos simples, dos pequenos gostares. eu fumo, absorvo cada nota daquele fumo, o rico gosto suave do começo, onde tudo é suavidade e novidade, onde a fumaça é suave e nos abraça com seu calor, traqueio com vontade o meio, a tranquilidade, e constância, a plenitude do momento, os últimos toques antes da ponta, onde se concentra a força, onde se aproxima o final, onde se concentra a resina escura de todas as sensações anteriores, onde se tem o gosto amargo da partida, que entorpece, inebria, e nos traz falsas promessas, há tosse, há pigarro, mas ainda sorvo até o final o enrolado de papel, uma homenagem, a tão simples gesto de desapego. Tiro o gato do telhado, ele corre para a comida dele, sirvo mais um pouco de café.
E o marinheiro? 
Ainda está no porto, se despedindo, se preparando, para amanhã partir, ir de encontro ao mar, ao norte, um homem de sul, no norte, vê se a vida não é uma piada.